domingo, 19 de agosto de 2007

Na contramão do popular

Com show “Dois Quartos”, Ana Carolina sofistica seu discurso



Ana Carolina tinha tudo para ser seduzida e cair na armadilha de seu próprio sucesso. “Cantora de MPB mais popular do Brasil”, só perdendo o posto de “mais popular cantora do País” para Ivete Sangalo, Ana sempre teve um diálogo interessante com a massa. Suas canções povoam tanto as segmentadas estações de rádio MPB quanto as mais popularescas emissoras comunitárias. No entanto, o álbum e o show “Dois Quartos”, apresentados no sábado, no Chevrolet Hall, dão demonstrativos de que, ao contrário de se deixar levar por uma concepção de espetáculo mais simplista, menos elaborada, Ana Carolina tenta - mesmo que, em alguns momentos, cause certo estranhamento - soar conceitual, refinada.

As filas enormes do lado de fora do Chevrolet Hall, os ônibus com placas de João Pessoa, Caruaru, Campina Grande, evidenciavam frases como “só vi isso aqui tão cheio no show de Zezé di Camargo & Luciano”. No entanto, longe da breguice dos shows da dupla sertaneja - bailarinos no palco, cenário “novo rico”, estética de número musical do “Criança Esperança”, entende? - Ana Carolina flerta, em sua concepção cênica, com a estirpe da MPB.A direção de Monique Gardenberg coloca Ana como uma grande crooner, vestida de terninho preto, em cenário retrô, com uma camada de ladrilhos prateados no fundo e backing vocals fazendo passinhos. Tudo soa estudadamente “vintage”, inclusive o ótimo vídeo de sadomasoquismo lésbico que aparece enquanto Ana Carolina canta - público em coro - “fui eu que comi e bebi a Madonna”. O referido vídeo, alvo de polêmica e rubor por partes de alguns, dá o tom da encenação: é “over” e cômico. Nunca erótico. O que o transforma num interessante artefato conceitual, assim como unir, como numa mesma canção, a assumidamente sexual faixa “Cantinho” com a soft porn “Fever”, de Peggy Lee.




Ana Carolina parece rir de toda a polêmica que a cercou: do fatídico “sou bi e daí?” da Veja, passando pelo lance do “eu gosto é de mulher”, cantada no antigo show, ela aparece agora pontuando grandes sucessos de sua carreira, mas com os olhos para frente. Sim, os grandes hits estão lá: teve “Garganta”, “Confesso”, “Quem de Nós Dois”, “É Isso Aí” (tocada ao piano, leve tom abaixo da original), um passeio pelas canções que fez para outros compositores - “Cabide” (para Mart’Nália), “Pra Rua Me Levar” (para Bethânia) - e, meio a contragosto do povão, as novas músicas. “Ruas de Outono”, “Aqui”, “Carvão” demarcam um território inexplorado: o público não canta, mesmo que se deixe levar pelas melodias fáceis.Momento particularmente curioso do show - e talvez destoante do clima vintage - é a parte, vamos assim dizer, “social”. Em “Nada te Faltará”, imagens de soldados e guerras emprestam um clima meio óbvio; em “Cristo de Madeira”, o caleidoscópio de imagens sociais e religiosas, apesar de lindamente editado, soa vazio. É nesse momento em que percebe-se que, apesar do seu enorme poder de comunicação via música, Ana Carolina ainda carece de desenvoltura cênica: parece “pesada”, sem leveza, “engessada”. Até meio pouco à vontade quando lê poemas.Ao final, cantando “Elevador”, “Louca Tempestade” e voltando no bis com “Rosas” e uma versão remix de “Eu Comi a Madona”, Ana dá demonstrativos de superação. Meio desajeitada, meio pesadona, dança, faz movimentos que parecem ser sexies, leva ao delírio o vasto público lésbico que povoou o Chevrolet Hall para vê-la. Dá indício de que aquilo é uma celebração do amor gay: tão contido, tão proibido, tão platônico - como ela mesma retrata em suas letras.


No entanto, ao invés de segregar, Ana Carolina recebe bem os héteros, os casais homem-mulher, que parecem se divertir com a comoção lésbica. Tudo na maior. Afinal, como diz a própria Madonna, que Ana Carolina sugere “comer”, “music makes the people come together”, ou seja, a “música faz as pessoas ficarem juntas”: héteros, gays, altos, baixos, negros, brancos.

Fonte : Thiago Soares - Folha de Pernambuco

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